Baixa autoestima cultural: não quero ser elite, quero ser povo.

Leonardo Triandopolis Vieira
7 min readJan 20, 2023
Morro da favela, Tarsila do Amaral

No meu entender, existem dois níveis de, vamos chamar assim, “viralatismo cultural” entre as pessoas que se consideram artistas e as pessoas que consomem arte, no geral, e não só no Brasil (que fique claro). O primeiro nível é o viralatismo macro, o de achar que o que é estrangeiro é melhor: “na Europa se lê muito mais que no Brasil”; “nos Estados Unidos eles têm mais qualidade”; “os portugueses é que sabem falar bem o português” etc. O segundo nível é o viralatismo micro, o lumpemviralatas, o de achar que o que é (ou está) nos grandes centros é melhor: “cultura mesmo, cultura boa, só no Rio de Janeiro ou São Paulo”; “carnaval bom, só o da Bahia, em Salvador”; “minha cidade não tem cultura” (quase sempre, comparando com São Paulo ou Rio de Janeiro); “você precisa se mudar para o Rio de Janeiro ou para São Paulo para fazer sucesso, para ser reconhecido”; “leio em português, mas só autores estrangeiros, livros traduzidos” etc.

Oras, infelizmente, isso é um fenômeno que vem do que podemos chamar de uma baixa autoestima cultural. Fruto de um povo, neste caso, o nosso, que se livrou das Capitanias Hereditárias, da monarquia, mas não se livrou completamente da colonização e nem da escravidão.

Antes de me aprofundar no tema autoestima cultural, para que eu possa desenvolver melhor a minha crítica, vou pincelar o que é cultura (fonte: dicionário Michaelis). Onde podemos destacar algumas sugestões de definição (assim encaro):

Conjunto de conhecimentos, costumes, crenças, padrões de comportamento, adquiridos e transmitidos socialmente, que caracterizam um grupo social.

Conjunto de conhecimentos adquiridos, como experiências e instrução, que levam ao desenvolvimento intelectual e ao aprimoramento espiritual; instrução, sabedoria.

Não tenho conhecimento de algum canto do planeta Terra onde exista, mesmo que pequeno, um grupo de seres humanos organizado socialmente que não tenha cultura. Cultura tem em todo lugar, de todo tamanho, forma e para todos os gostos. Ponto. Talvez, quem sabe, uma vírgula.

O problema não está em identificar que há uma vastidão cultural do Oiapoque ao Chuí, mas, sim, que há um certo constrangimento, uma imposição (falarei sobre quem impõe, no parágrafo abaixo) de que existe uma cultura inferior e outra superior. De que, só porque não tem uma mega livraria na minha cidade, não existem museus de arte moderna ou espetáculos musicais internacionais, não tem cultura ou a cultura é uma cultura medíocre ou inferior. Sério mesmo? Infelizmente, sim. Não que seja uma coisa real, pois não é. É uma questão ideológica, de controle e estratificação social. Um comportamento comum, que precisa ser detectado e eliminado o quanto antes, se quisermos criar a partir de uma sintonia de liberdade e de uma autoestima cultural transcendente.

Esse comportamento de inferioridade com relação a outras regiões e territórios, é um complexo derivado de um pensamento colonizado (como pontuei anteriormente) que não sumiu e, aliás, é muito reproduzido e reforçado por uma espécie de neoplasia social que conhecemos pela alcunha de elite. Elite financeira, elite “intelectual”, elite “cultural” … No fim, tudo parte do mesmo micro-organismo decadente. Essas ideias absurdas e estultas de “alta cultura”, “norma culta”, “cultura de verdade” … não passam de invencionices classistas, racistas, e tudo que está atrelado a uma sociedade que ainda tolera essas tais elites nacionais e estrangeiras.

A culpa é nossa, minha também, que ainda insistimos em adiar a ruptura com o capitalismo e seu neocolonialismo.

Atualmente estou escritor, escrevo e publico livros há dez anos (completos neste ano de 2023), e uma das coisas que percebo entre os meus pares é um pavor enorme com relação à norma culta: uma ansiedade tremenda em ser aceito e/ou reconhecido por prêmios literários (os dos tais grandes centros) ou outros escritores, até mesmo círculos, frequentemente autoproclamados, da elite cultural dos, mais uma vez, tais “grandes centros” — sempre preocupados em se encaixar, em escrever “certo”, em vender a sua imagem etc. Daí, ao invés de descobrirem em seus quintais espíritos livres, criando sua arte a partir de seus quintais, socializando a sua arte a partir de seus quintais, multiplicando a sua arte, acabam se tornando, entre outras coisas, escravos da gramática, inimigos da língua falada no Brasil, dependentes crônicos de cursos de escrita criativa (e seus coaches), funcionários (trabalhando 24h por dia, 7 dias por semana) não remunerados (ou mal remunerados) dessas neocolonizadoras mídias sociais.

Vou pegar um dos exemplos que listei acima. O do escritor preocupado em escrever “certo”, com medo da polícia da gramática tradicional. Estou me referindo a quem escreve literatura, ou pretende escrever. Isso ocorre, por, é quase certo, causa dessa baixa autoestima cultural. Que, por sua vez, gera um sentimento de insegurança, muitas vezes provocado por um comportamento (inconsciente) de colonizado, de alguém que se acredita inferior e que, por isso, precisa antes um aval de um outro superior. Aval de quem? De onde? Quem está acima de quem aqui? Então, por exemplo, vemos uma maré de gente que se aproveita dessa prisão ideológica-colonial e direciona o impulso de ansiedade, causado pelo medo de não ser aceito pelas castas superiores, para ganhar dinheiro vendendo cursos de escrita, cursos de escrita criativa, tutorias de escrita, leituras críticas… o poço sem fundo do inferno é o limite. Aposto que nenhum desses “coaches” de escrita, empreendedores literários, fiscalizadores da norma culta, contam para seus clientes que Machado de Assis (ele mesmo!), ao visitar seu sobrinho, leu a gramática que o jovem estudava e ficou pasmo por não entender nada do que lia. É, meus queridos e queridas, Machado de Assis pegou uma gramática e não entendeu bulhufas. E isso aconteceu, porque o escritor usava uma língua viva para escrever. O português brasileiro, a língua que se fala no Brasil, é uma língua viva. Nenhuma edição de gramática normativa jamais dará conta de cobrir todas as transformações e nuances de uma língua viva (isso em qualquer língua viva!).

Por essas e outras, que hoje entendo que a minha literatura não é gramatical (no sentido de ser um obcecado em escrever sob o regime da dita norma culta), mas, sim, um labirinto entre a palavra escrita em português brasileiro e as palavras faladas da língua brasileira.

Não estou sendo hipócrita. Nunca parei de estudar a gramática normativa, mas não para me adequar, ou para me submeter ao viralatismo do clubinho da elite cultural, o tal do clube da norma culta. Não. Estudo a gramática para entender o meu opressor, para desconstruir o meu colonizador. E para constatar o quanto a língua do país em que vivo e escrevo é viva. Afinal, escrevo na língua que se fala no Brasil: o tal do português brasileiro. Se quisesse trabalhar com uma língua morta, rígida, estéril, gramaticalmente em rigor mortis, eu escreveria em latim.

Não reproduza o que coachees de livros, vídeos e cursos de escrita criativa dizem que você deve ou não deve fazer. Produza o seu próprio conhecimento, a sua própria literatura, a sua própria autoestima cultural.

Vou me apropriar e parafrasear uma linha de raciocínio do professor de educação linguística e escritor Marcos Bagno, presente no seu livro Preconceito Linguístico (Parábola Editorial, 2015), que diz mais ou menos o seguinte (digo mais ou menos, porque adaptei o texto à minha crítica, trocando algumas palavras e acrescentando outras):

Cada um de nós, artista ou não, precisa elevar o grau da própria autoestima cultural: recusar com veemência os velhos argumentos que visem menosprezar o saber cultural individual de cada um de nós. Temos de nos impor. Quanto mais cantarmos o nosso quintal, mais ele será universal. Acionar nosso senso crítico toda vez que nos depararmos com um opressor autoproclamado defensor da norma culta e/ou membro de alguma elite cultural, saber filtrar as informações realmente úteis, deixar de lado (e denunciar, de preferência) as afirmações preconceituosas, autoritárias e intolerantes.

O poeta Manoel de Barros morreu aqui na minha cidade, em um hospital a poucos quilômetros da minha casa, em 2014, dois dias após o meu aniversário de 29 anos. Manoel, no início da sua carreira, muito provavelmente, também se sentiu inferior e achou que a cultura do lugar onde cresceu não era digna dos grandes centros culturais do seu país. Mudou-se para um desses grandes centros, tentou se mesclar, ascender, mas, enquanto esteve entre os “grandes” da sua época, não passou de um diminuto, um invisível. A sua poesia dessa época reflete isso: uma poesia fria, engessada, quadrada. Só quando Manoel volta para o seu quintal e resolve escrever sobre ele é que sua poesia se torna única e inigualável. Mesmo assim, se não fosse por um desses da “elite cultural” (no caso, Millôr) ter falado bem do Manoel… Bem, talvez ele hoje não fosse celebrado nem pelos seus regionais. Como, por exemplo, o gigante Tagore Biram, que teve, sim, um auditório na sede da TV Educativa MS inaugurado e, em Tirúa (Chile), um centro cultural, ambos, com o seu nome mas não teve a sorte de um Millôr para ser explorado postumamente por nossas elites culturais ou, até, uma escultura própria em uma das avenidas principais da cidade.

Não sei quem teve mais sorte.

Sei que já deu de sorte, já deu de centros, já deu de elites.

Ruptura, descentralização, autoestima e consciência daqui pra frente.

Produzamos nosso próprio destino.

Não para ser elite, mas para ser povo.

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