Sem contradição, sem arte

Leonardo Triandopolis Vieira
3 min readApr 29, 2024
Foto de camilo jimenez na Unsplash

No turbilhão do século XXI, entre outras coisas importunas e persistentes, sinto e constato que a arte que contradiz, que provoca, que busca romper com velhos e novos paradigmas, encontra-se acossada por correntes que procuram moldá-la segundo os ditames de um suposto punitivismo (físico e digital) disfarçado de “espírito do tempo”. Não vejo outra maneira de lidar com tal espécie de meta-regime-ditatorial e antiepistêmico a não ser através da necessidade premente de resgatar o direito à contradição.

A liberdade criativa, cerne da expressão artística, historicamente sempre foi, aqui e acolá, restringida por linhas, as mais distintas possíveis, de censura (prévia, auto, tardia…) que buscou, busca e buscará enquadrar as obras dentro de moldes homogêneos, caprichos de sistemas e ideologias dominantes. A única intenção: tolher a capacidade da arte de questionar, de desafiar e de confrontar as normas estabelecidas.

Não nego que a arte é, por natureza, um espelho da sociedade em que está imersa. Porém, a arte que tomo como ponto de partida para esta reflexão, reflete não apenas as verdades aceitas, mas também as contradições, os conflitos e as múltiplas perspectivas que permeiam os tecidos sociais. Por isso, negar à arte, e aos artistas, o direito à contradição é negar sua própria essência, sua capacidade intrínseca de provocar e de instigar algum debate.

Enquanto artista, pergunto: será que sou capaz de manter minha integridade criativa diante das pressões externas? Será que sucumbirei ao jugo das patrulhas de juízos (pois sim, hoje existem muitos juízos e muitas patrulhas), que buscam impor uma visão de mundo circunscrita e silenciar qualquer forma de dissidência e de contradição?

Não estamos, por hora, em uma ditadura militar, mas vejo artistas próximos e distantes cometerem o haraquiri da autocensura, assim como Chico Buarque um dia o fez (durante, aí, sim, a Ditadura Militar no Brasil de 1964 a 1985) e que culminou na sua interrupção temporária na música e na consequente produção da novela Fazenda Modelo: seu introito na literatura. Todavia, hoje, quem comete autocensura nem arrisca uma novela buarqueana, com medo do cancelamento, do linchamento… Não estamos na Alemanha nazista, nem na Buenos Aires de 26 de junho de 1980, quando foram queimados quase um milhão e meio de livros, mas é recorrente a perseguição e consequente proibição de livros de escritores mortos e/ou vivos. Há inúmeros vídeos espalhados pelas mídias sociais de “cidadãos” queimando obras e incitando outros a fazer o mesmo. Isso, quando não são instituições públicas ou organizações de prêmios literários.

Resgatar e discutir o direito à contradição na arte é uma questão de sobrevivência da expressão, da diversidade cultural e, em última instância, de manutenção do que nos faz, seres humanos, sermos o que somos.

A contradição germina o espaço do diálogo e o refloresta em espectros dos mais diversos afetos, o que é fundamental para o desenvolvimento intelectual e social de qualquer sociedade.

É uma questão de humanidade, porque a humanidade, em sua essência, é contraditória.

Termino(?) evocando uma fala de Waly Salomão, de 1993:

“Eu sou uma pessoa muito cheia de contradições…”

Eu me chamo Leonardo Triandopolis Vieira. Estou escritor e editor independente. Conheça meus trabalhos Clicando Aqui. Se gostou desse artigo, curta, comente e compartilhe.

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