Idiossincrasias de um escritor: agricultura da ficção e arquitetura de propaganda

Leonardo Triandopolis Vieira
2 min readJan 2, 2023
Foto: Larissa Anzoategui

“Esquecer é andar entre destroços
que além se multiplicam,
sem reparar na lividez dos ossos
nem nas cinzas que ficam…”

(Cruz e Souza)

Gosto de encarnar a escrita literária como uma espécie de finíssima linha entre (o que chamo de) a agricultura da ficção e a arquitetura de propaganda. A primeira tem a ver com a ausência do eu (aqui, lido enquanto produto, mercadoria, propriedade, território, corpo). Ausência esta, que só pode resultar em criatividade. Para criar, ser criativo, é preciso aniquilar, arruinar, esmigalhar o tal do autor: o tal do eu. Pela simples matéria de que a sintropia provocada por uma agricultura da ficção é nada mais nada menos o que ela é.

E o que ela é?

Ela é o que ela é: criação: ser: selvagem.

Veja, quando o agricultor utiliza adubo ou rega uma plantação, a terra adubada ou regada é tão dele quanto ele é da terra: ou do adubo: ou da água. Criar é fluir, um perpétuo derivar; é sempre um estado transitório, intransitivo para com o eu. Porque a ficção não necessita do eu como complemento. Precisa do nós, da coletividade.

Coletividade que germina a partir da ausência do eu.

O eu é a matriz do que entendo por arquitetura de propaganda, que é tudo aquilo que colonizamos e ressignificamos para nos dissociar do que é natural. A própria palavra, enquanto objeto-símbolo-ferramenta, é fruto dessa arquitetura.

Quando o eu justifica a escrita literária, tem-se arquitetura de propaganda.

Quando a escrita literária não justifica, mas corrompe o eu em nós fractais, tem-se agricultura da ficção.

Com a agricultura da ficção a escrita é apenas uma atividade de cultivo da imaginação. Um conjunto de ações sem um porquê, mas com um quê de significado quando coletivizado.

Não me interessa ser lido hoje, porque eu não tenho relevância.

Lógico, quem quiser pode ler meu trabalho enquanto eu ainda o cultivo. Mas a minha jornada é produzir uma literatura que sobreviva independente do eu.

Uma literatura que aniquile toda a minha arquitetura.

Que não seja mera propaganda do que eu acredito ser.

Para isso a literatura precisa ser cultivada, laborada como os povos indígenas fizeram com a Floresta Amazônica antes de serem subjugados pela arquitetura civilizatória dos colonizadores europeus.

Para isso é preciso criar a partir de: antes do eu.

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