O vírus da fake news pega até quem vive às margens da Internet e das Redes Sociais

Leonardo Triandopolis Vieira
5 min readFeb 26, 2021

E u quero morrer assim, conta dona Maria, aos 98 anos, sem incomodar ninguém. O que eu mais tenho medo, mesmo, é de ficar inválida e dar trabalho para os outros, sabe. Se Deus quiser, vou morrer assim, sem incomodar ninguém. Um dia me deito pra dormir e não acordo mais. Simples assim. Meu maior medo é esse mesmo, de ter que ficar acamada dando trabalho. Conta a mulher que já viveu quase um século e presenciou desde sua mãe dar pão e água aos revoltosos da Coluna Prestes, em 1927, quando tinha apenas 2 anos de idade, passando pela promulgação de uma nova Constituição no Brasil, em 1934, o golpe do Estado Novo de Vargas, em 1937, temeu que os alemães invadissem o Brasil quando o país decidiu entrar na Segunda Guerra Mundial apoiando o eixo dos Aliados, em 1942, horrorizou-se com a notícia de uma bomba jogada pelos Estados Unidos no Japão, uma bomba capaz de acabar com o mundo inteiro, em 1945, ouviu falar da Revolução Cubana sem dar muita atenção, em 1959, viu Brasília nascer, em 1960, sentiu as esperanças minguarem quando o marido foi sequestrado e a ditadura militar se instaurou no país, em 1964, sonhou com a chegada do homem à Lua e com São Jorge recebendo os astronautas, em 1969, enterrou o primeiro dos 7 filhos, em 1970, dos quais viria enterrar mais 3 ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000, soube de uma “nova” nova Constituição no Brasil, em 1988, assistiu sem entender muito bem um golpe parlamentar que destituiu a primeira presidenta do Brasil, em 2016, ouviu falar da internet no Brasil apenas no ano de 2018, quando esta já estava sendo comercializada em terras brasileiras desde o ano de 1994, e, mesmo assim, até hoje, jamais foi proprietária ou usuária de um aparelho celular, desses identificados como smartphones. Aparelho que só observa de longe quando algum filho ou neto se aproxima para mostrar alguma foto ou vídeo da família.

Dona Maria sobreviveu incólume à Tuberculose e à AIDS, reergueu-se sem marido em um país machista e sob o conservadorismo de uma ditadura militar, chorou copiosamente cada vez que perdeu um filho, um irmão ou qualquer outra pessoa próxima que pela ordem natural das coisas deveriam viver mais do que ela, mas, apesar de todas as tempestades que a vida desabou sobre seus ombros, dona Maria anda temerosa. A mulher que viveu mais que a União Soviética, que assistiu no noticiário transmitido por uma tevê ligada na recepção da funerária a morte de um tal de Mao Tsé-Tung na China, que morria aos 83 anos quando ela completava 53 e enterrava seu segundo filho, essa mulher, dona Maria, que agora enfrenta a possiblidade de pegar uma doença muito mais contagiosa que a AIDS, e cuja a única esperança é a vacinação, teme tomar a vacina. Dona Maria, mais do que pegar a doença, que vem ceifando a vida de centenas de milhares de pessoas mundo afora, principalmente idosos, teme tomar a vacina que foi desenvolvida para salvá-la e aqueles que ela ama. Seu temor vem justamente de mentiras e informações falsas espalhadas através de redes sociais e aplicativos de mensagem. Mesmo sem possuir ou mexer em um aparelho celular, mesmo sem utilizar a internet, dona Maria recebe as notícias de seus familiares e vizinhos, pessoas próximas a ela, por quem possui afeição e em quem confia mais do que em um agente de saúde ocasional ou um médico itinerante do posto de saúde que raramente frequenta.

A doença que dona Maria teme menos que a vacina, é a Covid-19, popularizada como Coronavírus, um vírus responsável pela maior pandemia em nossa sociedade em, pelo menos, cem anos, desde a Gripe Espanhola (que surgiu nos Estados Unidos!), e que já matou mais de dois milhões e meio de pessoas pelo mundo. Um número que seria muito menor se todos os países fizessem lockdown, determinassem a utilização de máscaras e mantivessem medidas de isolamento e distanciamento social, pelo menos enquanto as vacinas, já disponíveis, não forem administradas universalmente.

Os parentes e vizinhos de dona Maria repetem mentiras propagadas pelo próprio presidente do país e seu Ministro da Saúde, mentiras estas espalhadas e potencializadas pelas redes sociais e aplicativos de mensagem. Mesmo que divulgadores científicos e outros profissionais e pessoas bem intencionadas procurem trazer informações com embasamento científico e verídicas, a velocidade com que as fake news se espalham pela internet e são lidas como verdadeiras por boa parte da população é vertiginosa.

Mesmo retardatário na corrida pela vacinação e imunização da população, a passos tortos e lentos (bem lentos), o Brasil começou a vacinar (e não foi por causa do presidente e nem do seu capacho e Ministro da Saúde). A data para dona Maria se vacinar já está marcada, mas dona Maria não quer se vacinar. A vacina está matando gente, tem gente ficando é doente ao invés de se curar, conta dona Maria, acreditando no que seus parentes e vizinhos lhe contam que ouviram ou leram nas redes sociais ou nos aplicativos de mensagem. Uma neta de dona Maria, um dos poucos familiares imunizados contra o vírus das fake news, por telefone, pois está isolada em casa há mais de onze meses, tenta convencer dona Maria de toda forma possível. Mesmo ateia, a neta de dona Maria apela para a crença de sua avó no Deus concebido pela Igreja Católica, fé e religião seguida pela avó. Além da neta outros familiares, poucos por sinal, tentam convencer dona Maria. Teimosa, inalterável, dona Maria desconversa, bate o pé, faz-se intransigente. Mas água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Após algumas chantagens emocionais, dona Maria cede e é levada por um de seus filhos até o posto onde a vacina a espera. Chegando ao posto de saúde não é a vacina que remove o muxoxo da cara de dona Maria, mas a constatação de que a enfermeira que irá aplicar a vacina é uma amiga, uma conhecida não de longa data, mas de tempo suficiente para confiar e deixar que a agulha perfure o músculo de seu braço e a primeira dose da vacina seja administrada na mulher que que sobreviveu a quase tudo nesses 98 anos, inclusive a uma cirurgia cardíaca para colocar marcapasso, ano retrasado, mas quase perdeu para algo que nem faz parte do mundo que ela consegue entender e traduzir — a mentira e manipulação ideológica presente na internet e potencializada pelas redes sociais e por aplicativos de mensagem.

Dona Maria está em casa, vacinada, e passa bem. Os familiares, que ajudaram a nonagenária a superar o medo causado por mentiras espalhadas pela internet, agora torcem para que o resto da família, os que ainda seguem imersos e contaminados pelo vírus das fake news, respeitem o tempo necessário para que a vacina possa produzir anticorpos no corpo de dona Maria antes de a visitarem com suas máscaras penduradas na orelha ou utilizadas para cobrir apenas o queixo.

Dona Maria teve sorte, mesmo a contragosto, foi vacinada. Teve gente que se importou.

E quem não?

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